quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ginga, a Rainha Quilombola de Matamba e Angola


Nzinga Mbandi Ngola, rainha de Matamba e Angola nos séculos XVI-XVII (1587-1663), foi uma das mulheres e heroínas africanas cuja memória mais tem desafiado o processo diluidor da amnésia, dando origem a um imaginário cultural na diáspora tal como no folclore brasileiro com o nome de Ginga; despertou o interesse dos iluministas como a criação de um romance inspirado nos seus feitos (Castilhon, 1769) e citação na Histoire Universelle (1765); é cultuada como a heroína angolana das primeiras resistências pelos modernos movimentos nacionalistas de Angola; e tem despertado um crescente interesse dos historiadores e antropólogos para a compreensão daquele momento histórico que caracterizou a destreza política e de armas desta rainha africana na resisência à ocupação dos portugueses do território angolano e conseqüente tráfico de escravos.

Contemporânea de Zumbi dos Palmares, este outro herói afro-brasileiro (?-1695), ambos parecem compartilhar de um tempo e de um espaço comum de resistência: o quilombo.

Ao refletirmos sobre a rainha Nzinga Mbandi Ngola pensamos contribuir para a compreensão da inserção dos espaços políticos africanos na economia mercantil européia e das resistências criadas à sua dominação.

Um grande número de reinos africanos da costa ocidental e central do continente possuía uma concepção de organização político-espacial semelhante. Suas economias, antes da presença européia, estabeleciam-se em função de uma relação complementar com os espaços do hinterland através de comércio a longa distância. Desse modo, o poder centralizador desses reinos situava-se não no litoral mas no interior, com o fim de melhor controlar as rotas comerciais. Normalmente o litoral constituía-se como espaço de produção de sal, peixe seco ou outros produtos necessários ao interior.

Quilombo Etípiope Ocidental, gravura de 1732

As transformações que emergem no seio dessas sociedades, em termos do poder político, surgem por interveniências de elementos exógenos, neste caso, os traficantes europeus, e identificam-se na deslocação do poder político de linhagens detentoras tradicionais desse poder para linhagens "novas". Estamos pensando no contato sucessivo que os chefes tradicionais do litoral entabulavam com os navegantes que procuravam estabelecer um comércio efetivo com os povos da costa ocidental africana.

Esta dualidade do poder espacial podemos encontrar no reino do Dahomey (K. Polanyi, 1966), no Loango, (Philippe Rey, 1971), no Ngoyo (Serrano, 1983), no Congo (Pirenne, 1959). Em todos eles o tráfico de mercadorias e escravos era tributado e controlado por representantes do poder central.

Os traficantes portugueses tentam estabelecer portos de tráfico no litoral angolano para a comercialização e captura direta de escravos no litoral. Em 1578, Paulo Dias de Novais funda a cidade fortificada de São Paulo de Assumpção de Luanda que se tornará a futura capital de Angola em território mbundu. Era rei dos mbundus no território ndongo (Angola) e Matamba, Ngola Kiluanji, pai de Nzinga Mbandi Ngola, que nasce em Cabassa, interior de Matamba, em 1581.

Ngola Kiluanji resiste à ocupação portuguesa até a sua morte. No entanto, uma parte do território é tomada, constituindo o primeiro espaço colonial na região. O rei Kiluanji refugia-se em Cabassa, no interior de Matamba, e consegue reter o avanço dos portugueses. Após a morte de Kiluanji sucede seu filho Ngola Mbandi, meio irmão de Nzinga.

Os portugueses há algum tempo traficando com os jagas do litoral, guerreiros vindos do leste, também conhecidos por imbangalas, estão agora impedidos de fazê-lo, pois a rota para o interior é controlada pelo Ngola Mbandi. Este envia sua irmã Nzinga a Luanda para negociar com os portugueses. Recebida em Luanda com grande pompa pelo governador geral ela negocia sem ceder algum território e pede a devolução de territórios que obtém pela sua conversão política ao cristianismo, recebendo o nome de Dona Anna de Sousa. Mais tarde suas irmãs Cambi e Fungi também se convertem, passando a se chamar Dona Bárbara e Dona Garcia respectivamente.

Os portugueses, no desejo de estabelecerem o comércio com o jaga de Cassanje no interior, não respeitam o tratado de paz. A rebelião de alguns sobas (chefes), que se aliam ao jaga de Cassange e aos portugueses, cria uma situação de desordem no reino de Ngola.

Nzinga, ao encontrar um dos sobas, seu tio, que se dirigia a Luanda para se submeter aos portugueses, manda decapitá-lo, e dando conta da hesitação de seu irmão manda envenená-lo abrindo assim caminho ao poder e ao comando da resistência à ocupação das terras de Ngola e Matamba.
Os portugueses elegem um chefe mbundu, Aiidi Kiluanji (Kiluanji II), como novo Ngola das terras do Ndongo.

Nzinga, não conseguindo a paz com os portugueses em troca de seu reconhecimento como rainha de Matamba, renega a fé católica e se alia aos guerreiros jagas de Oeste se fazendo iniciar nos ritos da máquina de guerra que constituía o quilombo.

O quilombo e o rito de passagem

Máscara que representa o espírito de uma
defunta, em Punu, Gabão

Para melhor compreender este rito de iniciação deste grupo guerreiro, os jagas, será melhor dar a palavra a uma testemunha ocular da época, que a descreve com minúcias:

"A cerimônia de receber os meninos no quilombo pratica-se ainda hoje com solenidade, e eu, que a presenciei muitas vezes, posso descrevê-la exatamente.

Quando o chefe do quilombo, que é ordinariamente o comandante militar, quer conceder este privilégio, determina o dia da função. No intervalo de tempo precedente à data, os pais, que são sempre numerosos, suplicam insistentemente a concessão desta graça, persuadidos de que seus filhinhos, antes da admissão, são abominados pela autora da lei, e só depois de purificados serão benzidos por ela. O dia é de grande festa, com o concurso de muitos homens armados e enfeitados o melhor possível. Aparecem na praça em boa ordem e com muito decoro os cofres em que se conservam os ossos de algumas pessoas principais e que são guardados nas suas casas por pessoas qualificadas. Depois aparecem os cofres com os ossos dos antigos chefes do quilombo e de seus parentes. Todos são colocados sobre montões de terra, na presença do povo, rodeados por guardas e por uma multidão de tocadores e de dançadores, que festejam e honram os ossos daqueles falecidos. Por fim chega o comandante com a sua favorita, chamada tembanza, ou 'senhora da casa', ambos festejados pela música e pela comitiva dos seus familiares. Ambos untam os seus corpos e as suas armas e se sentam, ela à esquerda e ele à direita dos ditos cofres. Então, todos os presentes, divididos em grupos, fingem uma batalha, acometendo-se furiosamente. Acabada a batalha e as danças, que são bastante demoradas, até todos perderem o fôlego, saem, de algumas moitas predispostas, as mães que nelas estavam escondidas, com os meninos, e, mostrando-se muito preocupadas, com mil gestos vão ao encontro dos maridos, indicando-lhes o lugar em que cada menino está escondido. Então eles correm para lá com os arcos flechados e, descobrindo a criatura, tocam levemente nela com a seta, para demonstrar que não a consideram como filho, mas como preso de guerra, e que, portanto, a lei não fica violada. Depois, usando uma perna de galinha (nunca pude descobrir a razão disso), untam a criança com aquele ungüento no peito, nos lombos e no braço direito. Dessa maneira, os pequenos são julgados e purificados e podem ser introduzidos pelas mães no quilombo na noite seguinte" (Cavazzi, p. 182).

A versão que nos chega dos ritos antropofágicos dos jagas parece prender-se a uma falsa tradução da palavra que significaria retirá-las das famílias (linhagens) e não "comê-las" (Miller,1976).

Tal como a instituição das classes de idade, o quilombo é o que se denomina cross-cutting institutions' pois cortava transversalmente as estruturas de linhagem e estabelecia uma nova centralidade de poder, baseada sobretudo na máquina de guerra necessária para fazer guerra aos prováveis inimigos (Miller, p. 27).

Esse era um processo de recrutamento militar necessário a Nzinga para fazer face aos valores particularistas da estrutura de parentesco, ou pelo menos colocar uma inserção mínima (Balandier, 1969:78).

Em 1640, a rainha Nzinga e seus guerreiros atacam o forte Massangano, onde suas duas irmãs, Cambu e Fungi, são aprisionadas, sendo esta última executada. Aproveitando a ocupação temporária de Luanda pelos holandeses, recupera alguns territórios de Ngola com a adesão de alguns sobas (chefes). Salvador Correia de Sá y Benevides, general brasileiro, restaura a soberania portuguesa em Luanda e tenta restabelecer seu poder no interior.

Numa incursão do exército de Nzinga são aprisionados dois capuchinhos que a rainha aproveita para convencê-los de sua vontade de reconversão em troca do reconhecimento de sua soberania nos reinos de Ngola e Matamba e da libertação de sua irmã Cambu. O governador geral aceita libertar Cambu se Nzinga retificar um tratado limitando suas reivindicações a Matamba e renunciando aos territórios de Ngola, sendo o rio Lucala escolhido como fronteira. Este tratado, de 1656, só vai ser posto em prática depois da ameaça da rainha voltar à guerra. Só assim o governo de Luanda libera sua irmã Cambu, mesmo assim depois do pagamento de um resgate de mais de uma centena de escravos. Cambu tinha ficado retida em Luanda por cerca de dez anos.

Há uma paz relativa no reino de Matamba até a sua morte aos 82 anos em 17 de dezembro de 1663. Sucede a Nzinga sua irmã Cambu, continuadora da memória de sua irmã, a rainha quilombola de Matamba e Angola.

A resistência de Nzinga à ocupação colonial e ao tráfico de escravos no seu reino por cerca de quarenta anos, usando de várias táticas e estratégias que vão desde a conversão ao cristianismo até as práticas jagas, é fonte para a criação de um imaginário que se impôs como símbolo de luta contra a opressão. Memória de Ginga, memória de Zumbi.

*CARLOS M. H. SERRANO, Nascido em Cabinda - Angola, é Professor de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. É vice-diretor do Centro de Estudos Africanos da USP, Autor dos livros "Os Senhores da Terra e os Homens do Mar"; "A Revolta dos Colonizados" (paradidático, com o prof. Kabengele Munanga); "Brava Gente do Timor" (com o prof. Maurício Waldman); e "Angola: Nasce Uma Nação"...

À memória de Beatriz do Nascimento, estudiosa dos quilombos e quilombola também.

BIBLIOGRAFIA

BALANDIER, Georges. Antropologia Política. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1969.
BIRMINGHAM, David. A Conquista Portuguesa de Angola. Lisboa, A Regra de Jogo, 1974.
CASTILHON, J.-L. Zingha, Reine D'Angola. Histoire Africaine. Bourges, Ganymede, 1993.
CAVAZZI, Pe. João Antonio (de Montecúccolo). Descrição Histórica dosTrês Reinos Congo, Matamba e Angola (1687). Lisboa, Edição da Junta de Investigações do Ultramar, 1965, 2 volumes.
MILLER, Joseph C. "Nzinga of Matamba in a New Perspective", in Journal of African History, XVI 2 (1975), pp. 201-16.
---. Kings and Kinsmen, Early Mbundu States in Angola. Oxford, Clarendon Press,1976.
SERRANO, Carlos. "História e Antropologia na Pesquisa do mesmo Espaço: a Afro-América", in África: Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, 5, 1982, pp. 124-8.
---. Os Senhores da Terra e os Homens do Mar: Antropologia Política de um Reino Africano. FFLCH-USP, 1983.
SOROMENHO, Castro. "Portrait: Jinga, Reine de Ngola et de Matamba", in Presence Africaine, 3e. trimestre 1962, pp. 47-53.

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