Práticas do cotidiano
Realizei meu estágio curricular numa escola municipal na zona norte de Porto Alegre numa turma B 10 que corresponde a 3ª serie do 1º grau em 2007. E neste período, observei que as agressões verbais dirigidas aos alunos negros ainda da fazem parte do ambiente escolar. Digo ainda, pois as palavras que tanto me feriam a alma há trinta anos atrás desde meu jardim de infância são as mesmas que hoje ferem outras crianças. E me fez lembrar da minha infância naquela época, nos anos 70 quando uma criança negra e pobre, quando ofendida, não tinha a quem se queixar e simplesmente abandonava a escola como meu irmão fez por muitas vezes. Sempre fomos alvos fáceis de muitas piadas e agressões de colegas que lembravam sempre do meu nariz, das minhas tranças ou da cor da minha pele, e, principalmente falavam muito mal da nossa religião. Até as músicas depreciativas sobreviveram aos tempos.
E isto me fez lembrar o quanto foi difícil manter a minha auto estima num ambiente escolar tão desfavorável. Os conceitos belo-feio, pobre-rico, bom-ruim, melhor- pior são produzidos e padronizados diariamente e transmitidos pela família e sociedade que inconscientemente ou conscientemente , mas de forma cruel, alimentam a cultura colonial convencendo as crianças negras que seu cabelo é ruim , seu nariz é feio e esborrachado. Dessa forma a criança desenvolve uma baixa auto-estima, passando a não gostar de sua aparência pois Portela (2005, p. 95) afirma que a identidade da criança afro-descendente deve ser alicerçada quando ela ingressa na escola, isto é, desde a pré-escola, e isso ocorrerá quando a escola e educadores compreenderem que os alunos são indivíduos pertencentes a culturas diferentes, e que são diferentes, e principalmente, essas diferenças não devem ser hierarquizadas e que a compreensão e o respeito à diferença são condutas indispensáveis.
E para mim, hoje professora-estagiária ver aquelas cenas se repetindo na escola onde eu faria meu estágio e constatar que as crianças negras sendo alvo “brincadeiras” racistas me deixaram indignada, incomodada, e, porque não dizer revoltada. Indigna-me ver que outros professores, hoje meus colegas e funcionários da escola continuam encarando estas situações de preconceitos como fatos de pouca ou nenhuma importância. Colegas estes que não quiseram desenvolver atividades, para amenizar esta situação de violência social e psicológica contra a criança através de projetos sobre a cultura africana envolvendo as diversas áreas do conhecimento.
E a turma na qual trabalhei era composta por vinte e três alunos com idades entre nove e dez anos. A maioria eram crianças brancas. Era assustador o repertório racista desses meninos e meninas na hora da briga e xingavam os colegas de "carvão", "macaco", fazendo referência à cor da pele, ao cabelo e ao formato do nariz. Mesmo os alunos negros apelidavam seus iguais.
Então passei propor atividades para tratar o problema de forma lúdica e reflexiva de forma planejada, pois o aluno A., me procurou para falar sobre essa questão. Ele disse que estava muito chateado e que não queria mais vir às aulas por causa dos apelidos. As crianças o chamavam constantemente de macaco. Ele geralmente reagia de forma violenta, ficava arredio e nem queria participar das atividades. Depois se episódio, tive uma conversa séria com a turma e por uma semana os apelidos pararam, mas recomeçaram. Vale lembrar que o preconceito entre crianças tem um forte potencial destrutivo para as vítimas. As crianças podem se sentir segregadas, e ter seus potenciais reduzidos e sérios problemas de aprendizagem.
Também percebi que o pertencimento racial orientava a qualidade das relações de amizades que crianças cultivavam entre elas, como por exemplo, não sento com fulano, pois ele é preto e sujo. Esses apelidos sempre marcam a trajetória escolar e geralmente são as primeiras experiências de rejeição pública do corpo, pois neste sentido o cabelo crespo e a pele escura é símbolo de inferioridade.
Ao conversar com uma colega, professora-titular da turma sobre este episódio ela me respondeu:
“Sempre falo durante as aulas que não devemos nos preocupar com a cor da pele dos colegas, isso não tem importância porque somos todos iguais, fazemos parte da mesma história, da mesma comunidade”.Enfim -segundo a professora- não há diferença alguma entre o negro e o branco... Veja bem aqui na minha sala de aula eu acho que não faço diferenças, todos os meninos (as) negros e brancos são tratados, assim, da mesma maneira... Porém, nas outras turmas é comum, professores ou alunos, apelidarem os colegas negros, tem uma garota que estuda aqui pela manha que é chamada de Chica da Silva, por gostar de varrer a sala e cantar rap”. ( N ).
Após ouvir este relato da professora titular e observar a turma resolvi planejar uma seqüência de atividades em sala de aula tratando diretamente da questão das relações étnicas na sala de aula. Através de observações da turma durante o recreio, nos jogos e atividades que desenvolviam dentro e fora da sala de aula pude constatar a presença forte do preconceito que se manifestava nas brincadeiras no recreio, no refeitório na biblioteca, na hora da punição. Segundo Brandão (1995, p. 19), “é no cotidiano que nos tornamos observadores de nós mesmo e do próximo, isto vale dizer, “do outro”, “dos outros” e do mundo, portanto, do território”.
Tive a oportunidade durante a execução do projeto de estagio de trabalhar questões afros desconhecidas dos alunos como brincadeiras, jogos e arte. A partir de um levantamento de jogos, brinquedos,brincadeiras, danças, cantos e contos , propus atividades lúdicas com enfoque nas relações étnico-raciais que contribuíssem na formação de uma identidade cultural negra positiva. E registravamos todas as atividades em um caderno. Neste caderno de registro foram registrados um mapa do continente africano, questões a serem respondidas durante o andamento do trabalho tendo espaços para: desenhos (como forma de registro das lendas ou contos africanos apresentados), registros (das atividades aprendidas no dia) e avaliação do projeto. De acordo com Bogdan e Biklen (1994) diário de campo “é o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decurso da recolha e refletindo sobre os dados de um estudo qualitativo” (p.150)..
Através destas atividades as crianças puderam conhecer a historia e os significados da pintura no corpo dos guerreiros africanos. Trabalharam na execução da tinta a moda africana com sementes de urucum diluído em álcool e misturada a cola tenaz o que dá o tom laranja .Trabalharam também com capim de jardim diluído no álcool misturada a farinha de trigo o que resultou no tom esverdeado. Depois utilizamos beterraba cozida misturada com cola. Propus ao grupo a então a técnica da pintura a dedo. No primeiro momento houve o estranhamento depois pintaram com dedo sem pincel de forma lúdica. O objetivo destas atividades foi para que as crianças conhecessem a influencia africana sobre a cultura brasileira .
Tínhamos uma vez por semana uma roda de conversa.Numa dessas vezes perguntei as crianças quais eram suas descendências e as repostas foram italiana ,polonesa ou alemã . Mas nenhuma criança disse ter descendência africana. Pude observar uma supervalorização do lado branco da família de todas as crianças, inclusive daquelas filhas de negros e brancos e, enquanto verbalizavam sua descendência européia, as crianças falavam “- que chique!”.
Em uma outra situação, umas das questões que coloquei para as crianças era saber o que representava a África para eles/as, sendo que nas respostas expressaram representar ser um local selvagem com florestas, animais e tribos, ou sendo uma cidade e/ou país como demomnstra os relatos abaixo:
“É um lugar enorme cheio de árvores e flores e com muitos animais que em alguns lugares estão extintos. Eu não sei direito se existem gente branca lá ” (M).
“Lá é muito muito feio,não tem agua , lá tem bastantes animais como girafa, leão, tigre, os animais de lá são curiosos eu adoro os animais, eu queria ir pra lá algum dia” ( A.).
“Parece que lá as mulheres não usam sutiã”(B.)
As respostas que obtive estavam associadas à miséria, generalizações negativas
cristalizadas no imaginário da criança, como:
“Pra mim África é um lugar onde as pessoas que não tem condições para comprar só um remédio e precisam de ajuda”” (C.)
“Um país pobre, onde se passa fome. É um povo feio ” (I.).
Observei nas respostas dadas que as crianças possuíam uma concepção da África presa ao lado exótico, turístico, ou associado à miséria, doenças, que são conteúdos veiculados pela televisão através de telejornais e filmes “hollywodianos”. também, havia uma outra questão a ser respondida pelas crianças juntamente com seus pais, mães ou responsáveis, que perguntava: Qual a contribuição dos africanos na cultura brasileira? Nesta obtive respostas como:
“Contribuição cultural (danças, roupas, religião, músicas) eles foram mão de obra
para diversos trabalhos, , foram vítimas da escravidão e preconceito”.
“Os africanos contribuíram com os costumes, culturas, crenças e influencia na raça
da maioria dos brasileiros, descendentes de africanos”.
“Comida ,, dança, religião, “
“Não contribuíram com nada foram só escravos”.
A partir do diálogo com a família, uma aluna branca se descobriu descendente de africano e veio muito contente contar para turma que descobriu com sua mãe: “- professora nesse final de semana fazendo o tema com minha mãe descobri que também sou descendente de africano, ela me disse que somos descendentes de africano por parte do pai dela, meu avô”.
Nas questões finais, foi perguntado o que mais eles tinham gostado do projeto, e as respostas foram todas (sem exceção) positivas e bem diversificadas, as atividades mais citadas foram: as brincadeiras de modo geral, e mais enfaticamente os jogos. Também foi bastante citado o filme Kiriku e a feiticeira, a atividade de colorir o mapa do continente africano e um conto folclórico africano trabalhado na intervenção, conforme seguem alguns exemplos:
“Eu gostei de tudo, mas o que eu mais gostei, foi aprender o que é África. (M.I).
“As coisas que mais gostei foi das brincadeiras, do mapa que pintamos, e ainda até
uma história, pois eu pensava que África era uma cidade só que ela é um continente”.
“Eu gostei das brincadeiras, gostei das conversas, da roda de capoeira no recreio,,
gostei dos instrumentos africanos que o professor levou” (B ).
“Eu gostei das brincadeiras,, gostei também da história da África que a professora contou para a gente desenhar e gostei do filme e gostei de tudo” ( J).
Através destas respostas, percebi que o projeto obteve uma boa aceitação, sendo prazeroso e educativo. Quanto à questão sobre o que menos gostaram, as crianças apontaram algumas brincadeiras e/ou atividades, mas observamos que suas escolhas se pautaram em seu insucesso pessoal.
“Na hora que cai” (G.).
“Não gostei do mbde-mbde , porque não peguei nenhuma” (A.).
“Não tem nada que eu não gostei, eu adorei tudo. Cada dia eu ficava empolgado e
curioso para saber as brincadeiras que ele ia dar” (F.).
Ao final do projeto, refiz a pergunta realizada no início do mesmo, nesta percebi mudanças em relação às respostas anteriores, ocorrendo visão mais positiva da África. Observamos, no entanto, que algumas crianças não conseguiram se desprender do pensamento de que a África é uma cidade ou um país.
“Eu achava que África era um pais com muita pobreza e agora eu sei não tem só pobreza. Tem muitas coisas bonitas e legais que a gente se diverte muito.
Como as brincadeiras da África”. (G.)
“É um lugar lindo maravilhoso, tem bastante cultura beleza, danças, animais, lugares interessantes casas restaurantes, bares, shopping. Eu aprendi algumas brincadeiras de lá. É um continente, tem bastante coisas lá. Lá tem lenda,como aquela da menina que se chamava “Dandara a menina que trabalhava muito. Eu aprendi bastante brincadeiras como o mbude e tem um instrumento bem legal o caxixi. Lá na África não existem só negros, existe também brancos.(F).
Analisando a fala desta criança percebi que passaram a ver beleza na África e capacidade no seu povo rompendo o estereotipo do negro africano dócil sendo escravizado.
E ao incorporar o discurso da diferença através de um projeto que enriqueceu as minhas práticas e as relações entre as crianças, possibilitou, o enfrentamento de praticas de racismo, e a construção de posturas mais abertas às diferenças étnicas presentes na sala de aula.
Após estas atividades, pude refletir sobre o papel importante que o professor representa na sala de aula. Acredito que cabe também ao professor não reproduzir as idéias negativas sobre a etnia negra, perceber e combater as manifestações racistas no ambiente escolar utilizando instrumentos da própria cultura popular, e com políticas culturais de valorização do que vem da cultura negra, que ajudou a construir este país. É daí, é a partir dessas raízes que nós professores podemos dar inicio a aproximação real das diferenças, e não aproximação estereotipada no livro didático. E penso que a primeira atitude do professor frente ao conteúdo dos livros didáticos e paradidáticos deve ser a de identificar a sua ideologia, com o fim de se posicionar a favor ou contra. No que diz respeito às ideologias racistas, o posicionamento deve ser contrário a estas. Caso não seja identificada e refletida, a ideologia racista será perpetuada. Acredito também que cabe ao educador, eleger materiais que contemplem a diversidade étnico-racial da escola, bem como de nossa sociedade e, nessa tarefa, não escolher os que reforçam imagens preconceituosas, discriminatórias e depreciativas, mas sim, os que: apresentem ilustrações positivas de personagens negras; cujos conteúdos remetam ao universo cultural africano e afro-brasileiro; possibilitem aos leitores o acesso a obras onde habitem reis e rainhas negras, deuses africanos, bem como os mitos afro-brasileiros; cujas tessituras realizadas durante a leitura possam construir a elevação da auto-estima das crianças negras; representem sem estereótipos a população negra brasileira (SOUSA, 2006).
2 comentários:
Gostei muito do seu texto. Suas experiências se parecem muito com as minhas.
Sempre vamos encontrar preconceito no ambiente escolar, pq ele reflete a nossa sociedade e o que é pior sem a mascara que os adultos costumam usar.
Quase nunca encontro parceiros para desenvolver o trabalho sobre a história da África e do negro no Brasil, mas isso nunca me impediu de trabalhar.
Que o sucesso te acompanhe sempre.
Bjs.
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Mon francais n'est pas tres bon, je suis de l'Allemagne.
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